sábado, 24 de novembro de 2007

O amor, a canção ininterrupta


O AMOR, A CANÇÃO ININTERRUPTA

Trechos rearranjados e modificados de “Os Animais Carnívoros“, de Herberto Helder.

Dava pelo nome muito estrangeiro de canção, era preciso chamá-la sem voz: difundia uma sutil multiplicação de mãos e aparecia depois com sua nudez, escutando-se a si mesma, e fazia de estátua pelo parque inteiro, de repente voltava-se numa espécie de beleza repentina e urgente, inspirando a mais terrível ação de louvor, e bastava que tivéssemos muito silêncio, então os dias cruzavam-se uns aos outros e no meio avistava-se uma escultura imensa, fotografia embriagada. O que havia era uma plantação de espelhos, a canção aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos que ficar imóveis e sem compreender.
De repente a porta descerrava o espetáculo do antigo nascimento da lua num quarto escuro, agora víamos no meio de uma clareira de silêncio vivo nossa mútua e terrível nudez. Éramos uma cidade tremenda, e a canção era esta: "o amor, as mãos ininterruptas".




Quando penso em ti, danço até a ressurreição do tempo. Então embriago-me para ti, como as aldeias do corpo propagam-se pelo mar, tu emigras também em minhas vozes implacáveis.
De mãos dadas, entramos em pleno crime. Nesta trêmula doçura, somos crianças sucessivas nas pautas da música, com nossas aldeias devoradas pela lua, em misteriosos silêncios.
Nunca mais terei sono, vou despir-te tão lentamente quanto se tece uma estação no outono, porém tu dizes: “sei que o amor é sinistro" - e no entanto eu celebro este espaço louco.
De súbito, há um lugar que foge pelas trevas, porém tu dizes: “o amor é uma canção silenciosa”.
Mas abaixo, as flautas meditam a música, e nas terras do interior a canção é esta: os animais caem em fantasia.
Ouço a noite chegar como uma paisagem de violoncelos, ouço a solidão dos meses - e nos sentamos diante do incêndio.
“Só agora se morre de música circular”, e a noite vai de um lado a outro no sono espantoso de duas crianças completamente obscuras.
“Bom dia, estou nu”. Esqueço teu nome, depois tu partes, escreves as primeiras letras da noite, que cantam em tua morte.
Quando regressas, sou plena embriaguez, com a lua nascendo em minha glória.
Tu és paisagem repentina que se exerce na canção monstruosa com que avanças rumo à tua mais secreta e selvagem beleza.

André Setti

Meus poemas em: http://www.revistazunai.com.br/poemas/andre_setti.htm

3 comentários:

medusa que costura insanidades disse...

ficou divino!
Rita

Fabrício Fortes disse...

uau! muito bom espaço.. voltarei mais vezes. acessem também: http://notasujas.blogspot.com

Lady Vania de Tróia disse...

Ímpar!!!

Parabéns!!!