segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Dois poemas em prosa:




Utopia

Da observação das coisas múltiplas, que rajem pelo olhar,
com o fogo místico que toca as entranhas,
o abismo me fez, do amor, um prisioneiro.
Entrevado no fluxo abismal onde o nada se entrelaça aos ossos,
num ranger medonho, seu corpo era um cárcere sem fim que, para além, nada existia.
Teu ventre tinha o odor de uma corrente onde se enlaçava toda a ação, e me tornava escravo e fremente.
Teu dorso, rede ampla, onde cabia a alma, cheia de âmbares, odores e deleites, dos quais seria impossível resistir, aniquilava qualquer inspiração de ser livre.
Teus seios eram manicômios, neles podia urgir toda minha loucura, que tu pedias mais, assim, minha demência sem fim, fica consumada para sempre.
Teus olhos escuros eram faróis, mas quando o naufrago, em tal calamitosa e amedrontante ilha, busca um sinal de esperança, revela - se um abismo maior,
uma prisão ainda mais mordaz e impetuosa.
E já que esse esplêndido deserto era para mim o universo,
em cada curva dele reconheci o mundo, e todas especulações metafísicas foram, ali, para mim reveladas.
Cada cheiro, cada toque e mínimo movimento do seu corpo ensinaram – me a ciência, a nova e a antiga. Fui iniciado em toda alquimia quando, anelados, éramos nós o demiurgo atroz, primordial, transformador. Nas manchas e precipícios de sua pele deslumbrei toda a geografia do mundo e a mineralogia foi – me, assim, ensinada. Em nosso enlace febril e canino vislumbrei todas as festas e orgias da historia. Em ti, enfim, reconheci todas as mulheres. Reinventei minha consciência. A precisão de dizer pouco me pareceu a única razão e sentido, e meu compromisso. Assim, e para sempre, tenho apenas o corpo e a linguagem, sem nenhum outro sentido ou mistificação.



Conto

Ela, a dama do parnaso, sob um manto antigo, lírico, com gestos magníficos,
mas recatados. Naquela manhã, chorava a falta de seu amante.
Ele, o desregrado cavalheiro, o mendigo, o andarilho que, cortejado pela própria indulgência, por um império de cegos, aceitou os dez reinos, ajuntou seu ouro, e devorou-o em um riso sarcástico.
Insaciável, devorou os súditos, em uma antropofágica alquimia e, sozinho em seu vasto castelo, o povo todo digerido, comeu as próprias fezes, e pelos campos e vilarejos devorou as árvores, a terra, as pedras, e bebeu dos rios e dos mares.
Esgotado e imensamente melancólico, sentou-se alquebrado a beira do caminho sinuoso, onde então deparou-se com a dama do parnaso. Vendo-o destruído pelo excesso, pela fome, e pela imoralidade sem limites, implorou-lhe apaixonada, “quero que me devores!” “Quero entregar-lhe minha alma!” Ele pedia. Então gargalharam, e riram tanto, e dançaram e dançaram, em uma dança extrema, de uma vastidão sem paralelos, como se o Sol fosse a própria melodia e, a grama sob os pés descalços, a própria razão e sentido da vida. Dançaram tanto e com tal desvelo que um ao outro aniquilaram, como se a música ficasse assim, sem margens, cristalizada, como se o gesto mais brusco do eterno, ou como se nunca tivessem existido, ou como se sempre, em tudo.
Morreram os dois, caídos, a beira do caminho sinuoso.



*
Felipe Stefani