quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Místico



Repentino,
na clareira vulcânica da idade,
concebi assim a leitura da memória:
de que tudo que desata, cresce e morre
tem um gesto,
um gesto de princípio.

Deveríamos chamar ritmo
tudo que nos torna exaltados.

Somos tentados a ver dentro do sonho,
assim nos recriamos do que nos causa escândalo,
nomeamos a noite, a tarde e a manhã dos tempos
como fôssemos deuses.

Somos ritmo do sonho,
lembrando, vagando,
no fim de cada era,
causando escândalo.

Vede, as estrelas,
os frutos das figueiras,
o templo,
furiosamente serão lembrados.
Viveremos disso,
dando ao mundo
um nome de batismo.

Chamaremos inspiração
tudo que concentra,
avança e se enraíza.

Impérios definham.
Somos tentados a dizer que foi um sonho,
um sonho dentro do sonho,
se concebêssemos tal geometria.
Pois também se lavram as águas antigas.
Vede, as águas calmas
são também colhidas.

O sonho não é sonho,
a memória não é memória.
Há sempre um Deus a redizer a história.
***
Poema e foto de Felipe Stefani.

domingo, 18 de outubro de 2009

Crônicas do Poema Continuo.II

II- Itamambuca


Nas cítaras do poema continuo, Praia do Felix, Ubatuba 1999.


"Sobre o mar, que eu amava como se fosse me lavar de toda a mácula, via erguer-se a cruz consoladora."
Arthur Rimbaud


Certa tarde caminhei à ponta da praia e sob o sol precipitado e abrasado do verão, adentrei nas sombras da gruta, no caminho pedregoso, e segui a esteira do riacho, subindo o morro, entre a mata e o rochedo. Quanto mais subia, mais o delírio se adensava.

Entre os fachos oblíquos do sol eu via índios Tupis em indecifrável ritual, brumas lhes entreabriam os olhos, a cidades, como sonhos, se mostravam entre os ramos da arvores, cidades solares e antigas. Esquecidas tradições, oráculos, rastros, revelações e símbolos pairavam, funâmbulos, sobre a imagem desconexa dos protestos, dos insatisfeitos.

Era o efeito de um desejo reprimido, o grito dos olhares do passado contornado os mares do meu corpo. Eu não sabia.

Descíamos a serra com as luzes da pequena Ubatuba sufocadas pelas montanhas. Eram nostalgias, ondas de radio e subversões que varavam nosso espírito.
Você se lembra como pequenos universos eram cercados pela floresta?
Havia um forró brega, única diversão da cidade, onde caiçaras se acumulavam e nós nos misturávamos como música, música brega, devo dizer.
Se lembra da menina que você levou para casa? Tinha cabelos de relâmpago, me lembro.
Como era surfar? Eram boas as ondas que vinham do alto da arrebentação até se dissiparem nas margens da areia. Desenhávamo-las.
No século passado, os caras surfavam com madeirite. Viu aquela onda? Se lembra a extensão?
Jogávamos bola. Você ainda acredita no futebol? Os com mais fôlego duravam um dia inteiro. Depois testávamos as aptidões no mar: briga de galo, pirâmide humana, guerra na cachoeira. Concebíamos uma celebração.
Itamambuca me deu os corpos morenos, a rua de terra enraizada em meus pés.
Tinha uma discoteca incrustada na encosta que zombava das águas. As que freqüentávamos em São Paulo eram melhores, mas ondas sonoras zuniam no mar, como uma fábula.
Éramos extremos e dissonantes. Tínhamos as manhãs solares, de lá vieram os primeiros poemas, pois as manhãs eram frágeis com seu gesto dourado e suas ondas. Frágeis e esplêndidas. Nelas escrevi meus primeiros versos, ou nas ondas que desenhávamos, solares e dissonantes, como um zunido marítimo, como uma fábula.


Morrerei rompendo o mar,
sobre meus ossos recém naufragados,
o silêncio brotará
como um azul de tom inconciliável.

Tão longe estarei
das pálpebras dormentes dos astros,
nesse ultimo ato,
que nem o sol
indagará a idade do meu naufrágio,
meu ultimo nome.

No reflexo de um itinerário indivisível,
ressoarei no instante das ondas,
e na simplicidade sem fins ou ternura,
já não serei nem espuma, nem barca,

e não estarei sonhando.


As ondas abriam longos trilhos espirituais, era assim que sempre as compreendi, uma espécie de dança. Somos artistas de nós mesmos, decifrando braços cósmicos, as ondas. Vi um com as pernas retraídas, descendo a onda como um albatroz, sobre um pranchão antigo. A espuma envolveu-lhe e, de súbito, reergueu-se em sua constelação.
Itamambuca tinha areia dourada cercada por montanhas. Tudo era uma floresta mística, o cosmos se condensara em seu ventre, nessa forma de se diluir no universo.
Quem disse que os Deuses querem triste seu Olimpo? Mas nunca uma alegria vulgar, muito humana, e assim era Itamambuca.
No costão esquerdo, as ondas, repentinas, curvavam-se sobre as pedras submersas, relâmpagos azuis. Curvavam-se tão plenas, que era possível se abrigar em seu útero. Eu descia essas paredes como entregando o espírito, para ser, em arte, idéia e pensamento, um explorador de ritmos.
Lemos as ondas com o corpo, na dança, na arte.
As tartarugas vinham respirar ao nosso lado, rainhas marítimas. Os cientistas dizem que descendem dos dinossauros, então também éramos dinossauros. Tinha um pássaro vermelho, todo o corpo vermelho. Para mim, ele era um Deus. Intangível a filosofia.
Quando éramos adolescentes, combinávamos de ficar acordados, assistíamos a vídeos de rock, kung fu, bebíamos Coca-Cola. Alguns resistiam, íamos ver o sol nascer, sonhávamos, estávamos no mundo. O mar, montanhas, vento, astros, isso era o mundo, e, com o tempo, aprendi a ser artista nas paredes das ondas, aprimorei essa arte. É uma música inspirada, uma dança aérea, um vôo. O homem e seu balé, o espaço estético, a palma do mundo oferecendo seu fluxo, seu movimento. Os maiores artistas foram os melhores leitores na escritura divina das ondas. Mesmo nos tempos modernos, em que se quebra sutilmente a harmonia, a música continua límpida.
Acho que hoje sou um melhor artesão ao falar dos trilhos líricos, ao compor suas cítaras e reverberar na música do cosmos, pelas ondas condicionado, por tantos anos em seus braços. Busco a harmonia com as vagas. Vou esculpir a arte e rastrear o útero deste movimento marítimo. O coração reverbera séculos de humanidade e dor, o apelo da arte e da busca, incessante, pela liberdade. Estamos sempre no mundo e dançamos.
A liberdade é um caminho.




Itamambuca


Felipe Stefani

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Crônicas do Poema Continuo.I

I - Rua Augusta




Descer a Augusta era como ir adiante, cada vez mais profundo, nos círculos do delírio e do êxtase. Através da embriaguez, cada vez mais intensos , íamos dos cinemas, galerias e bares, empanturrados de jovens discursos falsamente intelectuais, aos pequenos inferninhos, ao neon, policia e prostituição. Era sempre o mesmo, a embriaguez, o horror, a angustia, e a liberdade. Os jovens aglomerados na rua, no chão, nas paredes, tocavam vilão, sorriam, fingiam. A cores importadas dos anos 80 cintilavam, assim como o neon. Gays aos beijos e a sempre falsa liberdade. Que tormento! Posso senti-lo até hoje em meu estômago diante daquela sensação de liberdade, que não me dava nada.

Quando rumava para Ubatuba, com as luzes da pequena cidade sufocadas pelas montanhas, minha alma sangrava na noturna e densa vegetação costeira. Estava vivo, por isso o desespero. Nas noites geladas da Augusta, não havia saída, estava pronto para morrer, ninguém me acolhia, e nem poderia, estava incomunicável para o afeto, a vastidão era uma ruína.

Então principiava a dança, o desespero alcança a ebriedade em fuga, mas a dispersão não muda, o vazio da liberdade. Buscava a iluminação dançando como um louco naqueles becos escuros? Nunca! Era um vôo sem razão, sem pouso, impuro.Mas ha, súbito libertava-me, era o auge da alucinação, dançava por todos os lados, por toda boate, era a própria música, despedaçada.


noite
constelações escassas
nas raízes de carnívoras povoações taciturnas
buracos ligados por dedos fulgurantes
contra as grutas do poder do sono lírico
os panos todos selvagens planos contorcidos
e não sentes o ar culminando à janela luminosa da loucura
a pulsar tua península crivando mortes e visões

o medo enfim
talvez a dança


Os amigos de nada serviam, eram doentes, sorviam a própria fuga, dementes. Nunca seriam amigos de nada, nem de ninguém, naquela errancia naufragada. Era à noite corroendo bestamente seus domínios. Noite fremente, a angustia concedendo delírios.

Era a morte que você buscava, minha amiga? Pálida amiga, queria arrastar-me junto em sua intriga. Te surpreendia, carregava ainda uma cruz no peito, um Cristo em declínio, uma promessa de renascimento.

Mas haviam as noites nostálgicas que bebíamos em homenagem a lua, emfim novos amigos se juntavam, bebíamos e celebrávamos a vida. Bebiamos e dançávamos, extremos, buscávamos uma redenção, uma coragem ao menos, para que a poesia fosse também corajosa. Finalmente, emfim, a poesia sem medo e sem retoques, a poesia do corpo.

Quantas e quantas vezes desci a Augusta, rumei para o fim da noite, vi o Sol do outro dia, dancei em busca da liberdade, nos inferninhos, enlacei-me, perdi-me, achei-me. As memórias estão na coragem, que tive.    


a noite incendiou-se
nos póros súbitos da epifania

corpo de raízes
num itinerário de assombros
corcel cego
onde cio derrama-se no âmago sem margem
refletida febre galga
a escultura do delírio

e no semblante da orgia
com destino forasteiro entre
flashes de neon exílio
correntezas
a volúpia da dança extenuante
guarda no estigma das marés
precipício inominado
urdido à finitude da inexistência

enfim
tombando entre raízes de paisagens naufragadas da noite
celebraremos outra vez os meteoros

e findos

nascemos




***
Felipe Stefani

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O Declínio da Inteligência.


Henri Bergson


René Guénon


Henri Bergson(1859-1941) é um filosofo que há muito tempo me interessa, ultimamente tenho dedicado mais tempo à leitura da obra desse autor francês. Seu pensamento é profundamente instigante e original, porém havia algo de errado, a meu ver, em sua crítica a inteligência. Outro dia, relendo o primeiro capitulo do livro “Oriente e Ocidente” do também francês René Guénon(1886-1951), em um desses sincronismos inexplicáveis da vida, ele fazia justamente uma crítica a esta abordagem de Bergson, jogando luz nessa questão. Segundo Guénon, Bergson se voltou contra o Cartesianismo, no entanto, não conseguiu escapar totalmente ao pensamento de Descartes, justamente por se apegar, na sua concepção de inteligência, na maneira em que ela era entendida pelo filosofo e matemático, é a inteligência que deu origem ao iluminismo e ao cientificismo moderno, e não a autêntica inteligência tradicional e religiosa. Segundo Guénon, é uma inteligência que, após renegar a metafísica tradicional, ou seja, a visão de uma realidade superior e transcendente, ficou a mercê, na filosofia e na ciência, das concepções, sentimentos e desejos individuais, sempre arbitrários.
Desse equivoco de Bergson acredito que nasceu, entre muitos intelectuais contemporâneos, o desdém a tudo que seja racional, ou racionalmente claro. Confundem razão com racionalismo, ou seja, o uso tradicional e metafísico dessa, por seu uso exagerado e unilateral. A intuição que Bergson propõe, no entanto, contraditoriamente, nada mais é do que uma intuição ainda presa nos moldes do cartesianismo, como Génon explica no texto que selecionei abaixo.
Emfim, nesse processo esquecemos que a razão tinha um uso muito mais amplo e profundo nos antigos, e que o contraponto conhecimento-fé, nada mais é do que outro erro do pensamento moderno.

Seguem os trechos do primeiro capítulo do livro “Oriente e Ocidente” de René Guénon, onde ele explica tudo isso muito melhor, e mais detalhadamente do que eu:

“Vê-se, pois aqui reaparecer essa degradação da inteligência que acaba por identificá-la com o mais restrito e inferior de seus empregos: a ação sobre a matéria visando unicamente a utilidade pratica. 0 chamado "progresso intelectual" definitivamente não é senão o próprio "progresso material" e, se a inteligência fosse apenas isto, seria preciso aceitar a definição que lhe dá Bergson. A bem da verdade, a maioria dos Ocidentais atuais não concebe a inteligência de outro modo. Para eles, reduz-se, nem mesmo à razão, no sentido cartesiano, senão à mais ínfima parte dessa razão, a suas mais elementares operações, àquilo que está sempre estreitamente ligado ao mundo sensível, do qual fizeram seu único e exclusivo campo de atividade. Para aqueles que sabem que existe algo mais e que persistem em dar às palavras seu verdadeiro significado, não é de "progresso intelectual" que se pode tratar em nossa época, senão, ao contrário, de decadência, ou melhor dizendo, de declínio intelectual.”

“A concepção de "progresso moral", por sua vez, representa o outro elemento predominante da mentalidade moderna. Referimo-nos à sentimenta1idade. E a presença deste elemento de modo algum nos fará modificar o julgamento por nós formulado ao dizermos que a civilização ocidental é totalmente material. Bem sabemos que alguns querem opor o domínio do sentimento ao da matéria, tornando o desenvolvimento de um deles numa espécie de contrapeso a invasão do outro e tomar por ideal o equilíbrio mais estável que for possível entre esses dois elementos complementares. Talvez seja este, no fundo, o pensamento dos intuicionistas que, ao associarem indissoluvelmente inteligência e matéria, tentam uma saída com o auxílio de um instinto muito mal definido. Com mais certeza ainda, é este o pensamento dos pragmatistas, para quem a noção de utilidade, destinada a substituir a noção de verdade, apresenta-se ao mesmo tempo sob o aspecto material e sob o aspecto moral. Vemos ainda aqui até que ponto o pragmatismo exprime as tendências especiais do mundo moderno, especialmente do mundo anglo-saxão, que é sua fração mais típica. De fato , materialidade e sentimentalidade, longe de se oporem, não podem existir uma sem a outra, e ambas alcançam juntas seu desenvolvimento mais extremo. Disto, temos prova na América, onde, conforme tivemos oportunidade de assinalar em nossos estudos sobre o teosofismo e o espiritismo, as piores extravagâncias "pseudo-místicas" nascem e disseminam-se com incrível facilidade, ao mesmo tempo que o industrialismo e a paixão pelos "negócios" são levados a um grau que chega às raias da loucura. Neste estado de coisas, não é mais um equilíbrio que se estabelece entre as duas tendências. São dois desequilíbrios que se acrescentam e, ao invés de se compensarem, agravam-se mutuamente. A razão deste fenômeno é fácil de perceber: quando a intelectualidade reduz-se a um mínimo, é apenas natural que a sentimenta1idade tome a dianteira. Esta, alias, por sua própria natureza, está bem próxima à ordem material: não há nada em todo o domínio psicológico, que esteja mais estreitamente dependente do organismo e, apesar de Bergson, é o sentimento, e não a inteligência, que se nos apresenta como ligado à matéria. Bem sabemos a resposta que podem dar os intuicionistas: a inteligência, tal como a concebem, está ligada à matéria inorgânica (é sempre o mecanicismo cartesiano e seus derivados que eles tem em mente) e o sentimento à matéria viva, que lhes parece ocupar um lugar mais elevado na escala das existências. Inorgânica ou viva, porém, é sempre matéria, - e pertencente às coisas sensíveis. É decididamente impossível à mentalidade moderna e às filosofias que a representam superar esta limitação. A rigor, se sustentam que haja uma dualidade de tendências, será necessário relacionar uma delas à matéria e a outra à vida, distinção que de fato pode servir para classificar de maneira bem satisfatória as grandes superstições de nossa época. Entretanto, reafirmamos, são ambas pertencentes à mesma ordem e não se podem realmente dissociar; estão situadas em um mesmo plano, e não superpostas hierarquicamente. Assim, o "moralismo" de nossos contemporâneos é apenas o complemento necessário de seu materialismo prático. Seria perfeitamente ilusório querer exaltar um em detrimento do outro uma vez que, sendo necessariamente solidários, desenvolvem-se ambos simultaneamente e no mesmo sentido, que é aquele a que se convencionou chamar "civilização".”

René Guenon, “Oriente e Ocidente”


***
Felipe Stefani

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Galeria.


Rembrandt, Filósofo Meditando. 1631. Louvre, Paris, França.



Rembrandt, Hendrickje Stoffels. 1957


Duas de minhas pinturas favoritas, as duas de Rembrandt. Não tenho palavra para dizer o quanto me atraem e o que sinto e penso sobre elas, exatamente. Parece que toda historia da arte, passado, presente ao seu tempo e futuro esta contida nelas...

Felipe Stefani

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Belos Horizontes (Desenhos feitos em BH)

Amei da cidade o ar atemporal e, à luz da tarde, os passeios labirínticos. No crepúsculo os raios solares, angulares, e o som barroco das vozes, inconclusas talvez, mas serenas.

Amei o amor erótico, fachadas, pilares, curvas, e o cabelo curvo da menina distraída à mesa do bar.

Amei o amor da alma, a calma dos corpos, em meio aos jogos, os montes vermelhos de sol. A noite, estrelas.



















Desenhos e texto de Felipe Stefani.