quarta-feira, 25 de novembro de 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Místico



Repentino,
na clareira vulcânica da idade,
concebi assim a leitura da memória:
de que tudo que desata, cresce e morre
tem um gesto,
um gesto de princípio.

Deveríamos chamar ritmo
tudo que nos torna exaltados.

Somos tentados a ver dentro do sonho,
assim nos recriamos do que nos causa escândalo,
nomeamos a noite, a tarde e a manhã dos tempos
como fôssemos deuses.

Somos ritmo do sonho,
lembrando, vagando,
no fim de cada era,
causando escândalo.

Vede, as estrelas,
os frutos das figueiras,
o templo,
furiosamente serão lembrados.
Viveremos disso,
dando ao mundo
um nome de batismo.

Chamaremos inspiração
tudo que concentra,
avança e se enraíza.

Impérios definham.
Somos tentados a dizer que foi um sonho,
um sonho dentro do sonho,
se concebêssemos tal geometria.
Pois também se lavram as águas antigas.
Vede, as águas calmas
são também colhidas.

O sonho não é sonho,
a memória não é memória.
Há sempre um Deus a redizer a história.
***
Poema e foto de Felipe Stefani.

domingo, 18 de outubro de 2009

Crônicas do Poema Continuo.II

II- Itamambuca


Nas cítaras do poema continuo, Praia do Felix, Ubatuba 1999.


"Sobre o mar, que eu amava como se fosse me lavar de toda a mácula, via erguer-se a cruz consoladora."
Arthur Rimbaud


Certa tarde caminhei à ponta da praia e sob o sol precipitado e abrasado do verão, adentrei nas sombras da gruta, no caminho pedregoso, e segui a esteira do riacho, subindo o morro, entre a mata e o rochedo. Quanto mais subia, mais o delírio se adensava.

Entre os fachos oblíquos do sol eu via índios Tupis em indecifrável ritual, brumas lhes entreabriam os olhos, a cidades, como sonhos, se mostravam entre os ramos da arvores, cidades solares e antigas. Esquecidas tradições, oráculos, rastros, revelações e símbolos pairavam, funâmbulos, sobre a imagem desconexa dos protestos, dos insatisfeitos.

Era o efeito de um desejo reprimido, o grito dos olhares do passado contornado os mares do meu corpo. Eu não sabia.

Descíamos a serra com as luzes da pequena Ubatuba sufocadas pelas montanhas. Eram nostalgias, ondas de radio e subversões que varavam nosso espírito.
Você se lembra como pequenos universos eram cercados pela floresta?
Havia um forró brega, única diversão da cidade, onde caiçaras se acumulavam e nós nos misturávamos como música, música brega, devo dizer.
Se lembra da menina que você levou para casa? Tinha cabelos de relâmpago, me lembro.
Como era surfar? Eram boas as ondas que vinham do alto da arrebentação até se dissiparem nas margens da areia. Desenhávamo-las.
No século passado, os caras surfavam com madeirite. Viu aquela onda? Se lembra a extensão?
Jogávamos bola. Você ainda acredita no futebol? Os com mais fôlego duravam um dia inteiro. Depois testávamos as aptidões no mar: briga de galo, pirâmide humana, guerra na cachoeira. Concebíamos uma celebração.
Itamambuca me deu os corpos morenos, a rua de terra enraizada em meus pés.
Tinha uma discoteca incrustada na encosta que zombava das águas. As que freqüentávamos em São Paulo eram melhores, mas ondas sonoras zuniam no mar, como uma fábula.
Éramos extremos e dissonantes. Tínhamos as manhãs solares, de lá vieram os primeiros poemas, pois as manhãs eram frágeis com seu gesto dourado e suas ondas. Frágeis e esplêndidas. Nelas escrevi meus primeiros versos, ou nas ondas que desenhávamos, solares e dissonantes, como um zunido marítimo, como uma fábula.


Morrerei rompendo o mar,
sobre meus ossos recém naufragados,
o silêncio brotará
como um azul de tom inconciliável.

Tão longe estarei
das pálpebras dormentes dos astros,
nesse ultimo ato,
que nem o sol
indagará a idade do meu naufrágio,
meu ultimo nome.

No reflexo de um itinerário indivisível,
ressoarei no instante das ondas,
e na simplicidade sem fins ou ternura,
já não serei nem espuma, nem barca,

e não estarei sonhando.


As ondas abriam longos trilhos espirituais, era assim que sempre as compreendi, uma espécie de dança. Somos artistas de nós mesmos, decifrando braços cósmicos, as ondas. Vi um com as pernas retraídas, descendo a onda como um albatroz, sobre um pranchão antigo. A espuma envolveu-lhe e, de súbito, reergueu-se em sua constelação.
Itamambuca tinha areia dourada cercada por montanhas. Tudo era uma floresta mística, o cosmos se condensara em seu ventre, nessa forma de se diluir no universo.
Quem disse que os Deuses querem triste seu Olimpo? Mas nunca uma alegria vulgar, muito humana, e assim era Itamambuca.
No costão esquerdo, as ondas, repentinas, curvavam-se sobre as pedras submersas, relâmpagos azuis. Curvavam-se tão plenas, que era possível se abrigar em seu útero. Eu descia essas paredes como entregando o espírito, para ser, em arte, idéia e pensamento, um explorador de ritmos.
Lemos as ondas com o corpo, na dança, na arte.
As tartarugas vinham respirar ao nosso lado, rainhas marítimas. Os cientistas dizem que descendem dos dinossauros, então também éramos dinossauros. Tinha um pássaro vermelho, todo o corpo vermelho. Para mim, ele era um Deus. Intangível a filosofia.
Quando éramos adolescentes, combinávamos de ficar acordados, assistíamos a vídeos de rock, kung fu, bebíamos Coca-Cola. Alguns resistiam, íamos ver o sol nascer, sonhávamos, estávamos no mundo. O mar, montanhas, vento, astros, isso era o mundo, e, com o tempo, aprendi a ser artista nas paredes das ondas, aprimorei essa arte. É uma música inspirada, uma dança aérea, um vôo. O homem e seu balé, o espaço estético, a palma do mundo oferecendo seu fluxo, seu movimento. Os maiores artistas foram os melhores leitores na escritura divina das ondas. Mesmo nos tempos modernos, em que se quebra sutilmente a harmonia, a música continua límpida.
Acho que hoje sou um melhor artesão ao falar dos trilhos líricos, ao compor suas cítaras e reverberar na música do cosmos, pelas ondas condicionado, por tantos anos em seus braços. Busco a harmonia com as vagas. Vou esculpir a arte e rastrear o útero deste movimento marítimo. O coração reverbera séculos de humanidade e dor, o apelo da arte e da busca, incessante, pela liberdade. Estamos sempre no mundo e dançamos.
A liberdade é um caminho.




Itamambuca


Felipe Stefani

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Crônicas do Poema Continuo.I

I - Rua Augusta




Descer a Augusta era como ir adiante, cada vez mais profundo, nos círculos do delírio e do êxtase. Através da embriaguez, cada vez mais intensos , íamos dos cinemas, galerias e bares, empanturrados de jovens discursos falsamente intelectuais, aos pequenos inferninhos, ao neon, policia e prostituição. Era sempre o mesmo, a embriaguez, o horror, a angustia, e a liberdade. Os jovens aglomerados na rua, no chão, nas paredes, tocavam vilão, sorriam, fingiam. A cores importadas dos anos 80 cintilavam, assim como o neon. Gays aos beijos e a sempre falsa liberdade. Que tormento! Posso senti-lo até hoje em meu estômago diante daquela sensação de liberdade, que não me dava nada.

Quando rumava para Ubatuba, com as luzes da pequena cidade sufocadas pelas montanhas, minha alma sangrava na noturna e densa vegetação costeira. Estava vivo, por isso o desespero. Nas noites geladas da Augusta, não havia saída, estava pronto para morrer, ninguém me acolhia, e nem poderia, estava incomunicável para o afeto, a vastidão era uma ruína.

Então principiava a dança, o desespero alcança a ebriedade em fuga, mas a dispersão não muda, o vazio da liberdade. Buscava a iluminação dançando como um louco naqueles becos escuros? Nunca! Era um vôo sem razão, sem pouso, impuro.Mas ha, súbito libertava-me, era o auge da alucinação, dançava por todos os lados, por toda boate, era a própria música, despedaçada.


noite
constelações escassas
nas raízes de carnívoras povoações taciturnas
buracos ligados por dedos fulgurantes
contra as grutas do poder do sono lírico
os panos todos selvagens planos contorcidos
e não sentes o ar culminando à janela luminosa da loucura
a pulsar tua península crivando mortes e visões

o medo enfim
talvez a dança


Os amigos de nada serviam, eram doentes, sorviam a própria fuga, dementes. Nunca seriam amigos de nada, nem de ninguém, naquela errancia naufragada. Era à noite corroendo bestamente seus domínios. Noite fremente, a angustia concedendo delírios.

Era a morte que você buscava, minha amiga? Pálida amiga, queria arrastar-me junto em sua intriga. Te surpreendia, carregava ainda uma cruz no peito, um Cristo em declínio, uma promessa de renascimento.

Mas haviam as noites nostálgicas que bebíamos em homenagem a lua, emfim novos amigos se juntavam, bebíamos e celebrávamos a vida. Bebiamos e dançávamos, extremos, buscávamos uma redenção, uma coragem ao menos, para que a poesia fosse também corajosa. Finalmente, emfim, a poesia sem medo e sem retoques, a poesia do corpo.

Quantas e quantas vezes desci a Augusta, rumei para o fim da noite, vi o Sol do outro dia, dancei em busca da liberdade, nos inferninhos, enlacei-me, perdi-me, achei-me. As memórias estão na coragem, que tive.    


a noite incendiou-se
nos póros súbitos da epifania

corpo de raízes
num itinerário de assombros
corcel cego
onde cio derrama-se no âmago sem margem
refletida febre galga
a escultura do delírio

e no semblante da orgia
com destino forasteiro entre
flashes de neon exílio
correntezas
a volúpia da dança extenuante
guarda no estigma das marés
precipício inominado
urdido à finitude da inexistência

enfim
tombando entre raízes de paisagens naufragadas da noite
celebraremos outra vez os meteoros

e findos

nascemos




***
Felipe Stefani

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O Declínio da Inteligência.


Henri Bergson


René Guénon


Henri Bergson(1859-1941) é um filosofo que há muito tempo me interessa, ultimamente tenho dedicado mais tempo à leitura da obra desse autor francês. Seu pensamento é profundamente instigante e original, porém havia algo de errado, a meu ver, em sua crítica a inteligência. Outro dia, relendo o primeiro capitulo do livro “Oriente e Ocidente” do também francês René Guénon(1886-1951), em um desses sincronismos inexplicáveis da vida, ele fazia justamente uma crítica a esta abordagem de Bergson, jogando luz nessa questão. Segundo Guénon, Bergson se voltou contra o Cartesianismo, no entanto, não conseguiu escapar totalmente ao pensamento de Descartes, justamente por se apegar, na sua concepção de inteligência, na maneira em que ela era entendida pelo filosofo e matemático, é a inteligência que deu origem ao iluminismo e ao cientificismo moderno, e não a autêntica inteligência tradicional e religiosa. Segundo Guénon, é uma inteligência que, após renegar a metafísica tradicional, ou seja, a visão de uma realidade superior e transcendente, ficou a mercê, na filosofia e na ciência, das concepções, sentimentos e desejos individuais, sempre arbitrários.
Desse equivoco de Bergson acredito que nasceu, entre muitos intelectuais contemporâneos, o desdém a tudo que seja racional, ou racionalmente claro. Confundem razão com racionalismo, ou seja, o uso tradicional e metafísico dessa, por seu uso exagerado e unilateral. A intuição que Bergson propõe, no entanto, contraditoriamente, nada mais é do que uma intuição ainda presa nos moldes do cartesianismo, como Génon explica no texto que selecionei abaixo.
Emfim, nesse processo esquecemos que a razão tinha um uso muito mais amplo e profundo nos antigos, e que o contraponto conhecimento-fé, nada mais é do que outro erro do pensamento moderno.

Seguem os trechos do primeiro capítulo do livro “Oriente e Ocidente” de René Guénon, onde ele explica tudo isso muito melhor, e mais detalhadamente do que eu:

“Vê-se, pois aqui reaparecer essa degradação da inteligência que acaba por identificá-la com o mais restrito e inferior de seus empregos: a ação sobre a matéria visando unicamente a utilidade pratica. 0 chamado "progresso intelectual" definitivamente não é senão o próprio "progresso material" e, se a inteligência fosse apenas isto, seria preciso aceitar a definição que lhe dá Bergson. A bem da verdade, a maioria dos Ocidentais atuais não concebe a inteligência de outro modo. Para eles, reduz-se, nem mesmo à razão, no sentido cartesiano, senão à mais ínfima parte dessa razão, a suas mais elementares operações, àquilo que está sempre estreitamente ligado ao mundo sensível, do qual fizeram seu único e exclusivo campo de atividade. Para aqueles que sabem que existe algo mais e que persistem em dar às palavras seu verdadeiro significado, não é de "progresso intelectual" que se pode tratar em nossa época, senão, ao contrário, de decadência, ou melhor dizendo, de declínio intelectual.”

“A concepção de "progresso moral", por sua vez, representa o outro elemento predominante da mentalidade moderna. Referimo-nos à sentimenta1idade. E a presença deste elemento de modo algum nos fará modificar o julgamento por nós formulado ao dizermos que a civilização ocidental é totalmente material. Bem sabemos que alguns querem opor o domínio do sentimento ao da matéria, tornando o desenvolvimento de um deles numa espécie de contrapeso a invasão do outro e tomar por ideal o equilíbrio mais estável que for possível entre esses dois elementos complementares. Talvez seja este, no fundo, o pensamento dos intuicionistas que, ao associarem indissoluvelmente inteligência e matéria, tentam uma saída com o auxílio de um instinto muito mal definido. Com mais certeza ainda, é este o pensamento dos pragmatistas, para quem a noção de utilidade, destinada a substituir a noção de verdade, apresenta-se ao mesmo tempo sob o aspecto material e sob o aspecto moral. Vemos ainda aqui até que ponto o pragmatismo exprime as tendências especiais do mundo moderno, especialmente do mundo anglo-saxão, que é sua fração mais típica. De fato , materialidade e sentimentalidade, longe de se oporem, não podem existir uma sem a outra, e ambas alcançam juntas seu desenvolvimento mais extremo. Disto, temos prova na América, onde, conforme tivemos oportunidade de assinalar em nossos estudos sobre o teosofismo e o espiritismo, as piores extravagâncias "pseudo-místicas" nascem e disseminam-se com incrível facilidade, ao mesmo tempo que o industrialismo e a paixão pelos "negócios" são levados a um grau que chega às raias da loucura. Neste estado de coisas, não é mais um equilíbrio que se estabelece entre as duas tendências. São dois desequilíbrios que se acrescentam e, ao invés de se compensarem, agravam-se mutuamente. A razão deste fenômeno é fácil de perceber: quando a intelectualidade reduz-se a um mínimo, é apenas natural que a sentimenta1idade tome a dianteira. Esta, alias, por sua própria natureza, está bem próxima à ordem material: não há nada em todo o domínio psicológico, que esteja mais estreitamente dependente do organismo e, apesar de Bergson, é o sentimento, e não a inteligência, que se nos apresenta como ligado à matéria. Bem sabemos a resposta que podem dar os intuicionistas: a inteligência, tal como a concebem, está ligada à matéria inorgânica (é sempre o mecanicismo cartesiano e seus derivados que eles tem em mente) e o sentimento à matéria viva, que lhes parece ocupar um lugar mais elevado na escala das existências. Inorgânica ou viva, porém, é sempre matéria, - e pertencente às coisas sensíveis. É decididamente impossível à mentalidade moderna e às filosofias que a representam superar esta limitação. A rigor, se sustentam que haja uma dualidade de tendências, será necessário relacionar uma delas à matéria e a outra à vida, distinção que de fato pode servir para classificar de maneira bem satisfatória as grandes superstições de nossa época. Entretanto, reafirmamos, são ambas pertencentes à mesma ordem e não se podem realmente dissociar; estão situadas em um mesmo plano, e não superpostas hierarquicamente. Assim, o "moralismo" de nossos contemporâneos é apenas o complemento necessário de seu materialismo prático. Seria perfeitamente ilusório querer exaltar um em detrimento do outro uma vez que, sendo necessariamente solidários, desenvolvem-se ambos simultaneamente e no mesmo sentido, que é aquele a que se convencionou chamar "civilização".”

René Guenon, “Oriente e Ocidente”


***
Felipe Stefani

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Galeria.


Rembrandt, Filósofo Meditando. 1631. Louvre, Paris, França.



Rembrandt, Hendrickje Stoffels. 1957


Duas de minhas pinturas favoritas, as duas de Rembrandt. Não tenho palavra para dizer o quanto me atraem e o que sinto e penso sobre elas, exatamente. Parece que toda historia da arte, passado, presente ao seu tempo e futuro esta contida nelas...

Felipe Stefani

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Belos Horizontes (Desenhos feitos em BH)

Amei da cidade o ar atemporal e, à luz da tarde, os passeios labirínticos. No crepúsculo os raios solares, angulares, e o som barroco das vozes, inconclusas talvez, mas serenas.

Amei o amor erótico, fachadas, pilares, curvas, e o cabelo curvo da menina distraída à mesa do bar.

Amei o amor da alma, a calma dos corpos, em meio aos jogos, os montes vermelhos de sol. A noite, estrelas.



















Desenhos e texto de Felipe Stefani.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A HOLDERLIN

Soa o sagrado em meu coração embriagado:
em teu silêncio entrarei, mundo das sombras,
inteiro, ainda que meu canto não me alcance,
pois meu sonho é um barco e um violino
entre as margens dançarinas do tempo.

André Setti

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Qual o dom do cavalo luminoso?

As estrofes são musicais
ante os olhos imensos do tempo,
por vezes os transformam
em ruínas elaboradas
com o pó melancólico
dos edifícios lógicos,
por vezes singram,
sangram e cantam
em coro
os mais fundos delírios.

No mesmo ato,
platéia e palco
dançam a peça eterna,
em lucidez embriagada.

André Setti

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A vida, por vezes, há de nadar contra suas próprias barreiras, como uma dança.

André Setti

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Cada dia há de ser uma aventura errante, entre águas, amor, palavras, vivências. Cada dia há de ser uma vida, para a vida ser maior do que o mundo.

André Setti

Isso não é literatura. É só uma coisa que pensei.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Girard e Valéry.

O texto abaixo, de Paul Valéry, está em perfeita sincronia com o pensamento do filósofo contemporâneo Gené Girard, e com o que tenho pensado muito ultimamente. Leiam e meditem:



"Se o sentido profundo das discussões especulativas e das polêmicas, inclusive literárias, fosse perseguido nos corações por uma análise encarniçada, não há dúvida de que encontraríamos na raiz de nossas opiniões e de nossas teses favoritas não sei que princípio de decisões implacáveis, não sei que obscura e cega vontade de ter razão pelo extermínio do adversário. As convicções são ingênuas e secretamente assassinas."

Paul Valéry (1871-1945)


(Trecho de "Discurso sobre a História", 1932.)

Não deixem de ler nem Paul Valéry nem René Girard.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Traços em fuga







Desenhos de Felipe Stefani.

Mais desenhos do autor, neste link: www.pbase.com/sodesenho/felipe_stefani

Exercício























Desenhos de Felipe Stefani.

Mais desenhos do autor, neste link: www.pbase.com/sodesenho/felipe_stefani

terça-feira, 21 de julho de 2009

Clarice Lispector: roteiro do insondável


Diálogo imaginário com Clarice Lispector escrito por Flávio Viegas Amoreira e lido pelo mesmo em encontro literário sobre a autora no Sesc Santos em 18 de junho de 2009. A cenografia é do artista plástico Maurício Adinolfi e destaca A maçã no escuro, um dos romances de Clarice:



Clarice, o desejo é um risco bom; não tenho para onde voltar depois da liberdade: e a liberdade me joga no redemoinho da paixão. Apesar de ter a doença dos sentidos demais aguçados, elevo-me ao Himalaia desse amor que me perfura: estou em estado de insatisfeito: o amor é coisa intraduzível, mas reparto fragmentos de compreensão: o que importa é que eu não saia ileso. O desejo por onde começo a dizer que quero estar nele, ser por ele, contaminar-me de sua pele é uma aprendizagem. Desejo é a palavra mais linda em qualquer idioma: desejo como quem aprende a andar depois do parto de estar no mundo sem escoras: lanço-me a ele o: Desejo. Agora ele tem cara: semblante de pedra. O amor é pedra onde cinzelo / quanto mais miro, mais turvo, embaço, mas não me cego: a pedra é o impossível que alcanço, o mais próximo do impossível, Clarice, é o homem impreciso: o amor por ele é sufocador, mas continua vago.

Quero viver de tesão com o mundo: nunca ser indiferente, mesmo com ódios passageiros. Amargura é dor carnívora. A felicidade dói, machuca: é um peixe elétrico, viceja. No meu sofrimento há um pátio ajardinado que rego: retenho esse meu afeto e nele acho uma fresta no sufocamento. Não, não Clarice! A nudez desse homem não me basta: é o entendimento do tempo que tiro dele a fórceps o que me sustenta: forjo o que amo, ele vem depois do que já intuía. Sabia desse amor em algum lugar do instante: agora que encontrei a face do meu delírio, remo na maré do próprio dilúvio que joga-me como arca: esse meu amor exige criar um Universo de coisas inexistentes. Abri a porta a um monstro marinho, colhi açucenas de puro aço, injetei força em minha medula adormecida de silêncio: cerrei minhas mandíbulas e segui farejando o absurdo. O amanhecer é improvável, a morte agora é não mais tê-lo: agarrei-me ao amor, à pedra, ao homem: não me rendo até o último gozo desse santo suplício. O homem onde pouso o espírito é um mar que corre nas veias: sabor de maresia que imanto. Amor, Clarice, é impregnar-se de uma galáxia por dentro. Ele é vasto, já não mais pedra o amor: o desejo é montanha: é vereda, eu pastoreio e rebanho.

Há uma geologia íngreme no subterrâneo: na psicologia dos meus dedos: ilumino com a espera as cavernas que ele me causou: escrevo-te Clarice para encontrar o silêncio. Não tenho mais forças para lutar contra o insondável: arrebenta em meu peito acanhado um Atlântico de ondas vertiginosas que me jogam contra toda realidade: a realidade é um sonho que me esqueceu. Estou em estado de praia, de rebentação: o abissal penetra-me agora: tenho coragem de ir ao fundo da coisa que sou eu, mas o eu espalhou-se. O amor reconhece a verdade não no coração, mas na imaginação da felicidade: o coração mentiu muitas vezes e agora não tenho altura para o abismo. Eu vi a Beleza e ela não me cansa de lágrimas: penso conceber o que se passa entre mim e o jogo, mas eis caído num lance inesperado. Eu quero esse amor mais do que o infortúnio de seu desprezo: a questão é o que fazer quando o amor secar de cansado: umedeço. Sei que existe a plenitude dum mergulho, da rosa, do ocaso do Sol no outono: procuro a plenitude Clarice, e lastimo que tudo concorra para desfazer-se: afogo-me, a flor despetala-se saudosa do caule e o crepúsculo me enche de terrores: não é a morte que tememos, é a finitude.

Dizer-te torna-me menos fantasma de palavras: o Destino se interpôs em nossa conversa: o que não é memória é hiato, estou desvelando o amor pela fala: sou impelido a dizer, a tentar reproduzir abstrações tão concretas quanto a lâmina que me fere de não poder: amar tornou-se uma prece de fora para dentro: uma liturgia do recôndito, uma celebração visceral do incompleto, não estou conformado com amputação da minha Alma. Perco-me: sou fluvial, cedo ao leito rubro: navego na torrente precipitando-me desabrido: só não transpasso: essa é a causa do meu desespero sem descanso: não transpasso por nosso espírito não penetrar-se em coito: eu o tenho sem ter , Clarice, o corpo não é ainda o amor, a carne é movediça, meus olhos não fixam o delírio: a fatalidade dessa paixão é não poder ser totalmente outro por inteiro e o inteiro descobri de modo terrível: ele não se permite, o inteiro não existe. Aprendi a trepar com outra Alma. Há essa selva entre o real e o simbólico: toda atmosfera submarina aterrada surta e endoido sem loucura: esse o drama que me alimenta e implode: a paixão é composta de razão excessiva, mas há outra face da razão: a posse do impalpável. Ele é a fruta e o paladar da fruta: minhas vísceras contêm também sua polpa: eu consisto em ser por ele sem estar nele contido: por que não vem a palavra que encerre a angústia: onde adquiro a fragrância do Eterno?

Evito-me as vezes: escapulo de mim, foragido de algum espelho ancestral, busco onde não encontrar o que me foi perdido sem ser percebido. Perceber é longo demais: quase nada tem um diagnóstico certeiro além da própria dor e do grito. Uma vez achei o perfeito: era invisível aos olhos desatentos: o perfeito é quando sentimos não mais querer sentir: dormindo eu sinto, mas quero a dor desperto... o perfeito é rápido como um raio bruto ou a saudade em estado de anestesia. A maçã não amadurecida quedava distendendo-se ao meu apetite: um esplendor! o diabo, Clarice, é a espera da colheita. A culpa de todo meu amor é não contentar-me em ser sóbrio de luz: exorbito implorante: emociono de deixar ele entrar: não amo toda parte, sou raro e apartei um alvo: só me chamo Eu quando ele me afaga: sou Eu quando mais não for além de Eu, ele por dentro tatuado. Ele estendeu o braço e lembrei de ti Clarice, quando dizias sobre os amantes: eu disse a ele “sou tu e eu é tu, nós é ele”. Amo romper a gramática como um dique não contendo a represa: amo em azul, amo num azul muito delicado, o azul cobalto. Agora desnudo o que antes inexistia. Despojo-me do que antes não tinha: me totalizo: desnudei-me numa clareira da floresta escura: não fugir da sombra é o maior sinal de luz / a raiz sofre ao rasgar-se semente: da unidade ao fragmento, deitamos sementes de nossos corpos-raízes: sou primordial: tornei-me bromélia: o poeta mora onde se entrega amor, a pedra subjaz: dissolveu-se sedimento liquefeito. Esquecer é não ter vivido: se não tivesse nascido por onde perambulava o que é em mim existido?

Clarice, estranho-me: quem somos quando escrevemos? a máscara ou o rosto distorcido? Tenho a memória da terra, o Mar ejacula / corrosão da pedra / pomo / faca sem gume / fui alcançado por um distanciado farol da torre: eu presumo, não penso: pensar é certeiro, e nada acerta quando buscado: o sentido é outro que o da fonte. Sou amado como seiva esvaída em transe: os ossos desse amante salgam minha pele distendida: castelo de proa / assovios de navios na noite do Tempo: é noite do Tempo: o Espaço é clarabóia / mansarda acolhendo Vida: o que é Vida, Clarice? senão rastilho de pólvora. Confesso um segredo com meus membros em água viva: Clarice, confesso: meu amor é um navio sem rota cortando caminhos por minha artérias de zinco: cada célula de que sou composto tem um núcleo exalando sentimento. Esgotarei a existência até a última seiva e haverá gotas que jorrarão meu Eu e o amor que experimentei nos elementos: nosso acalanto terá aparência de ciclos entre a chuva e o trovão. Escrever é poder dizer num relógio d´água tudo que não sei explicar: precipito-me de novo ao penhasco: queria tornar-me Oceano para libertar-me da paixão: rasgo com meus músculos impotentes o cruel muro da prisão: a paixão por ele tem sido minha prisão. Todas paixões são prisões: recomeço escalar o muro: o penhasco: agora quero ser calmo: quero ser contemplação: cansei da paisagem: eu o carrego amando sem mais muros. Conheci o amor numa tarde: agora meu futuro é sempre 2 horas da tarde. Alcancei a esfera: a esfera, o círculo que não domino não sou mais eu, nem ele que ainda amo, o cerne, a essência é a busca da libertação, estou no aprendizado da libertação,
Clarice: libertação é espremer o que passa: busquei o total, o total não fica nunca pronto: então choro com o milagre do que passa: dos amassos que dou na existência: transo de espírito para o espírito: o dele é azul também.

Dois nunca são um; amor é areia que junto para arquitetar um castelo que desmancha, mas ainda assim volta a ser Oceano-Mar. Somos rochedos vizinhos: o sal semeia esbatendo em nossas ilhas que se lambem de partida. Rochedos, mesmo assim seremos misturados de areia. Não somos mais ilhas: contemos um no outro: somos agora continente.



sábado, 18 de julho de 2009

Essa é uma brilhante entrevista de João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello com René Girard.


A despeito da importância antropológica da Bíblia, houve, nos dois últimos séculos, um claro processo de “abandono” da leitura dos textos bíblicos. Como o senhor vê esse processo e quais as razões para que ele ocorra?

Hoje se publicam mais livros sobre a Bíblia do que nunca, mas o que assinalam é verdade: a Bíblia nunca esteve tão pouco presente em nossa história. É preciso ver tal situação de uma perspectiva nietzscheana-heideggeriana: “o retraimento de Deus”. Acho que a expressão heideggeriana “o retraimento de Deus” é na verdade antinietzscheana, já que a “morte de Deus” é ainda muito cristã para ele. Afinal, o Deus que morre é Cristo. E uma vez que Deus morre, a idéia de ressurreição tem de vir logo em seguida: como vimos, é o que acontece no aforismo 125 de A gaia ciência, um dos textos mais impressionantes de Nietzsche, no qual ele consegue dizer coisas que vão além de sua própria indagação. A morte de Deus e a pergunta acerca de como podemos oferecer reparação por essa morte levaram Nietzsche à idéia do assassinato fundador. A noção heideggeriana de retraimento dos deuses constitui um esforço para negar a primazia do Deus bíblico ainda presente na fórmula nietzscheana. A fórmula proposta por Heidegger significa que a religião em geral está perdendo espaço, não só o Deus cristão; o que é verdade. A antiga ordem sacrificial pagã está desaparecendo por causa do Cristianismo! Este parece estar morrendo com as religiões que faz perecer, visto ser considerado apenas mais uma religião mítica em termos sacrificiais. O Cristianismo não é apenas uma das religiões destruídas, é o agente dessa destruição. A morte de Deus é, em todos os sentidos, um fenômeno cristão. O ateísmo moderno corresponde a uma invenção cristã. Inexiste ateísmo no mundo antigo, excetuando-se o epicurismo, que era limitado e cuja negação dos deuses não era particularmente incisiva, beligerante. Não negava Deus contra alguma coisa ou alguém, não exibindo o forte caráter negativo do ateísmo moderno.

O desaparecimento da religião é um fenômeno cristão por excelência, pois. Quando falo de desaparecimento, refiro-me à religião como algo que associamos à ordem sacrificial. E a religião assim entendida continuará a desaparecer em todo o mundo. Conversei com um estudioso de sânscrito a esse respeito: tal processo também está ocorrendo na Índia e, embora bem mais lento por lá, vem acelerando-se. O retraimento de todos os deuses é o primeiro fenômeno transreligioso. Outro fenômeno dessa magnitude que estamos presenciando sem nos darmos conta é o fundamentalismo. E é interessante observar que os fundamentalistas não tomam conhecimento dos fundamentalistas de outras religiões. São inteiramente autocentrados, interessando-se apenas pelo seu próprio fundamentalismo e lutando pela extinção de outras formas de religião. Por exemplo, parece-nos inconcebível uma Internacional fundamentalista, embora possamos imaginar uma ateísta. Mas, a meu ver, ambos são aspectos da mesma destruição da religião, destruição essa que é essencialmente uma decorrência do Cristianismo, pelo fato de desacreditar o sacrifício. Sem acreditarmos em sua eficácia, este não pode existir. Graças ao Cristianismo, não mais acreditamos.

Em sua opinião, portanto, apesar das aparências, o mundo tem-se tornado cada vez mais cristão, ainda que a Bíblia não seja mais lida?

Sim. E, de certa forma, esse fato torna o fenômeno bem mais paradoxal, pois é mais fácil resgatarmos princípios bíblicos quando não sabenis que o são. O niilismo moderno é uma mentira. Após a Segunda Guerra e a dissolução da URSS, ou seja, com a queda do regime comunista, quando nossos intelectuais julgaram liquidado todo e qualquer princípio absoluto, estavam errados: a vitimologia ou a defesa das vítimas se tornou sagrada: é o princípio absoluto. Ninguém jamais atacará tal princípio. Então, podemos dizer que todos temos essa crença cristão. Alguma vez já viram um desconstrucionista ou um foucaultiano fazendo o tipo de genealogia que Nietzsche tinha em mente? Ele visava a uma desconstrução do Cristianismo, por ele entendido – de forma acertada – como a defesa das vítimas. Nossos niilistas modernos querem desconstruir tudo, exceto a defesa das vítimas, causa por eles abraçada. Silenciosamente, rejeitam o Nietzsche pró-nazismo. Constituem, na verdade, um tipo muito peculiar de niilistas; negam tudo, exceto a defesa da vítima. Noutras palavras, não poderiam ser mais cristãos, embora, é claro, neguem o Cristianismo, numa autocontradição cada vez mais óbvia.

Os princípios cristãos de fato prevaleceram e continuam a prevalecer?

Continuam a prevalecer muitas vezes de forma distorcida, caricatural, quando a defesa da vítima, por exemplo, gera novas perseguições. Só podemos perseguir indivíduos ou grupos quando temos a justificativa de ser contra qualquer prática persecutória, de perseguir apenas para combater perseguições! Em suma, só podemos perseguir perseguidores. Daí a popularidade da propaganda, hoje maior do que nunca. Mas se trata de um uso dessa difusão em nada relacionado ao uso feito pelo Cristianismo: a princípio, a propaganda concernia às verdades cristãs a serem propagadas. Hoje em dia, ocorre um fenômeno muito pouco cristão em seu verdadeiro propósito, pois precisamos provar que nosso oponente é um perseguidor, para justificar nosso desejo de persegui-lo. Ora, a propaganda cristã visa a abolir a possibilidade de perseguições! Daí a verdade cristã, sem a autocrítica capaz de mostrar nossas tendências violentas, ser tão inquisitorial quanto a própria Inquisição.

Trata-se de um processo muito eficiente: valores cristãos são difundidos sem provocar nenhum skándalon.

Sim e não. Sempre há o skándalon. Trata-se de um processo bastante complexo, porque o mundo moderno está ficando cada vez mais cristão, por um lado, e cada vez menos, por outro. Cumpre enfatizar amgos aspectos, e foi o que tentei fazer, por intermédio de Nietzsche. Hoje, o chamado multiculturalismo defende com veemência as minorias oprimidas. Tomando assim o partido das vítimas, os multiculturalistas convenientemente rejeitam o mecanismo do bode expiatório. Em resumo, são cristãos. Ao mesmo tempo, contudo, acreditam em vingança. Vingança contra toda a cultura ocidental. Não percebem que repetem e acentuam, em nível mundial, a metamorfose anterior da cultura, o Renascimento e o Iluminismo.


***
Fonte: O Individuo http://oindividuo.com/

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Links

Confiram a Edição especial da Germina em homenagem a "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias, como meus desenhos e um poema meu parodiando o clássico: http://www.germinaliteratura.com.br/sabiaseexilios.htm

Também na Germina, uma página com poemas de desenhos meus: http://www.germinaliteratura.com.br/2009/felipe_stefani.htm

Confiram também a bela revista Diversos Afins, edição de aniversário, com um poema meu: http://diversos-afins.blogspot.com/




Felipe Stefani

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Cortejo do Crepúsculo





Sou como os velhos peregrinos de Bizâncio
na anunciação das vastidões precárias
no ritmo dos enganos do corpo
nas batalhas

quem caminha entre o hino
e o sonho do império
tem toda dimensão da vida de um era
e se ergue o olhar as labaredas do anoitecer
(leve ofuscamento angular da eternidade)
vê refletida nos altares dos palácios
a majestade
não da vida
ou da rima
contida na ressurreição dos príncipes
mas do silêncio dentro de um grito

que escapa

e nos corteja

na mão da tecelã que se envaidece com o crepúsculo

o inefável labirinto absoluto está em tudo

resta o tempo a desfazer o próprio tempo

no mundo.




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Poema e Fotografia de Felipe stefani

terça-feira, 14 de julho de 2009

Canção



I

ao serem refletidas as vibrações
vê-se facilmente a alternância
as quatro estações a errância
das visões sucessivas

eis as conjunções da vida
do corpo do mundo e enfim a fábula

as pirâmides contemplam
o corpo ébrio do poeta

por isso água e fogo se completam
montanha e lago atuam convergindo

o caminho a tudo enlaça prosseguido
na harmonia continua das luas que despertam
as liras que incitam o fogo em propensão

retorna a dança ao equilíbrio infinito

instrumento lapidar dos ciclos mutação na fonte do mito

“deitai em vós meu jugo” e a extrema unção
cavalga o dragão do céu infindo

e além

quem corrompe o pensamento percorre todo a extensão da escrita deste arado pouco afeito a dança mas divino surgem loucas florações do caminho

compare a extensão dos sete mares com tudo o que há no mundo compare o Reino do Meio com a imensidão marítima semelhante a um grão no grande silo a criação tem dez mil fontes e o homem é uma delas aquilo que passaram os cinco imperadores e os Três Reinos aquilo que lamenta o homem honorário aquilo em que trabalha o homem prestativo tudo nada mais é do que isso se algo não tem forma os números não expressam a dimensão nos tempos antigos Yao abdicou em favor de Shun e Shun reinou como imperador K’uai abdicou em favor de Chieh e Chieh foi destruído T’ang e Wu lutaram e se tornaram reis o Duque Po lutou e foi eliminado olhando para isto desse modo vemos que lutar ou ceder comportar-se como Yao ou como Chieh pode ser nobre e elevado mesquinho e restrito impossível entender o caminho é sem princípio nem fim mas as coisas tem vida e morte as idéias e os números são da mesma natureza e elevam-se a dez em tudo um rio imerso na contensão do pensamento elaborava essa metáfora do meu corpo no mundo tudo e pouco contido na expiração do afeto busca entreabrir o ato do silêncio água e fogo na alternância do sentido desse reino de símbolos minha vasta espiral adormecida pulsa nos remotos enlaces onde o tempo sonhado abrange o tempo conhecido e dentro das palavras imenso caldeirão estou multiplicado antes sou tocado na bela comunhão do sábio como uma aurora explodindo mil unidades de ecos até as dez mil cítaras do afeto “em uma volta completa esmaguei a grande vacuidade” esse sopro do mestre corre cada labareda nas montanhas do meu abismo e sonho dentro da errância da vida com meu nome no meio em restrito candelabro de imitações os dias se espelham com o abraço da ternura elementar lhes rasgando como um prisma e tornando o que ama mais exato e infinito

pois ele amou precisamente
como haviam previsto

o mar

o tempo

comunhão

nos ciclos

da expressão

da morte

fugas de estações revisitadas sempre

e o renascimento

a palavra sem palavra do enlace absoluto

estou disperso em minha cama
elaboro vasto mundo e corpo ama
a volúpia da fala e a fala a escrita
isso é tudo
o resto é sonho e o sonho imita
o silêncio profundo

II

da emanação

extremas florações convergem








Fotografia e poema de Felipe Stefani, Inverno 2009

domingo, 12 de julho de 2009

Rodrigo Souza Leão



Quero deixar aqui minha mais profunda e sincera homenagemn a Rodrigo Souza Leão, grande poeta, falecido semana passada aos 43 anos no Rio de Janeiro. Nunca a morte de alguém que tive tão pouco contato (contato no sentido temporal e corpóreo) me tocou tanto. Talvez pela generosidade que ele sempre demonstrou comigo, talvez por ele ter partido tão jovem, acho que os dois... Meu contato com ele foi assim, quando fui publicado na Zunai, não o conhecia, só ao Cláudio Daniel, e ele me escreveu do nada me dando os parabéns, já achei bem generoso. Nos falamos pouco desde então, mas a três semanas, quando lancei meu livro, mandei para ele a divulgação pedindo que ele me ajudasse, e ele enviou a todos seus amigos. São poucos os que fazem isso, garanto. Desejo toda paz, luz e força aos amigos e parentes, e garanto que ele está em algum lugar de harmonia e paz.

Um lindo poema dele:



MELHORA.


Tudo é uma criação da mente
Um poema ou um poente

Tudo tem um forte sentido
Quando não se oprime o indivíduo

Alguém soletra uma distância
A distância separa os fatos

A verdade não é tão necessária
Já que Heráclito já morreu



...

Sugiro que leiam mais poemas dele, leiam todos, e seu romance "Todos os Cachorros São Azuis" publicado pela 7Letras. Faço isso com um aperto no coração e uma culpa, pensando: "deveria ter feito isso muito antes". Mas tudo tem um ensinamento, daqui para frente, vou começar a publicar aqui os que admiro. O que aliais foi a proposta inicial desse blog.

O blog que Rodrigo mantinha: http://lowcura.blogspot.com/


Felipe Stefani

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Para encomendar meu livro "O Corpo Possível", livro que contém um longo poema e desenhos meus, lançado pela Ed. Dulcinéia Catadora, é só mandar o pedido para esse e-mail: dulcineia.catadora@gmail.com

Um exemplar custa seis reais.


Felipe Stefani

terça-feira, 7 de julho de 2009

Fragmentos



como uma estrada irreversível navegamos nosso próprio nascimento pois só é grande aquele que renasce
(tento forjar um enigma)

No fundo azul de um céu (ou mar) deves buscar tua poesia e digo que devemos ser imensos pois o sol nos lembra que o infindo é incomum ao tempo
(isto é a metáfora do símbolo)

a possível explicação de nossa sede de glória;
a voz de Cristo nos solstícios

o álamo seco floresce
e é preciso atravessar a água
do álamo seco surge um broto de raiz
a viga-mestra cede a ponto de cair

o firme e central suave e alegre
vaga e uma jovem se casa
com o velho andarilho e segue como um hino
sua dança sem nunca cessar
o imóvel caminho

(esta era a resposta da água)

de fato

o tempo é só a mutação

então o mestre forjou estas palavras

dizem que durante sua vida sua voz atingiu cinco mil e quarenta e oito mundos e a doutrina do vazio e a doutrina do pleno e há o ensinamento para a plenitude imediata e para o esvaziamento gradual

mas de acordo com a canção iluminada não há seres e corpos não há voz os sábios numerosos como as areias da praia são somente como bolhas de água no mar os sábios e os mestres são como relâmpagos

voltai-vos para o leste e olhareis a terra do ocidente fitai o sul e a estrela do norte lá estará e sempre
T’ai-t’o nada diz e nele confiam nada realiza e o amam plenamente estão íntegros os poderes embora a virtude não tome forma

e a paz da voz que excede todo entendimento guardará os vossos corações e os vossos sentimentos

naquele que ao beber da mulher de Samaria deu-lhe a água viva da impossível memória

disso um sobressalto rasgou-me as vísceras e como um riu desorbitado escrevia essas palavras como teias e as marcas que entreabriam o grande arado que tingia o céu da escrita me fez contemporâneo das estrelas





Texto e desenho de Felipe Stefani
Mais desenhos do autor, aqui: www.pbase.com/sodesenho/felipe_stefani

domingo, 5 de julho de 2009

Poema em fuga no twitter.



Fiz um poema no twitter, ou melhor fiz e refiz com partes de poemas meus antigos, depois juntei e vi no que deu, isso:



Posso aventurar-me a perguntar às flautas do céu às flautas da terra o que nada significa disso a ave se encerra no céu e seu nome é vento

Ainda não emergido da minha fonte onde as oliveiras choram morrerei amanha nos espinhos nas quedas da paisagem do silêncio continuo

é preciso ter os pés atonitos para se lançar contra o declinio

é isso o amor uma visão esplêndida no dentro e no fora da elegante demência que naufraga

sei que toca as partes vivas e a morte do enlace onde nasce a música e as estaçòes nos moldam a chama e a simetria

até a luz além da luz da vida

é preciso ter os pés atonitos para se lançar contra o declinio

O tempo é ilusão

sinto calma quando os braços tingem surpreendidos a súbita infinitude e paira sobre os ossos o intacto rascunho da chuva anterior e sempre

e assim damos o nome

ou então o caminho?

não a caminho no meio do nome (o mestre disse)

posso aventurar-me a perguntar as flautas da terra as flautas do céu o que nada siguinifica disso

o grande labrego explode no ar e seu nome é vento

antes

fogo

delírio das paisagens de um grito extremo

para dizer

mundo

de entender do abismo o acorde mais profundo







Poema e desenhos de Felipe Stefani.