quarta-feira, 11 de março de 2009

Segue abaixo um texto que recomendo:


Vanguarda e Fetiche

Folha de São Paulo, 07 de março de 2009

Antonio Cicero


De maneira geral, as teses vanguardistas são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, julgava inferior a poesia que falasse “de coisas já poéticas”, pois acreditava que a poesia devia procurar “elevar o não-poético à categoria de poético”.
Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, para começo de conversa, é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela.
Tais teses não são verdadeiras senão pela metade. No caso mencionado, são verdadeiras porquanto afirmam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, porquanto implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas.
Afinal, o que é uma coisa já poética senão uma coisa de que a poesia já falou ou de que já falou muito? E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo de que muitos outros poetas já tenham falado? Então Goethe não deveria ter escrito a sua obra-prima porque já houvera, antes dele, não sei quantos “Faustos”?
Jamais um grande poeta temeu abordar pela enésima vez um tema poético (Fausto, Ulisses, Orfeu, Narciso, a brevidade da vida, a juventude, a velhice, o sol, a noite, o amor, a saudade, a beleza etc.). Ele o aborda e é capaz de fazê-lo como se ninguém antes o tivesse feito: como se não fosse um tema poético. Só o poeta fraco quer fazer algo tão “novo” que não possa ser comparado com o que os grandes mestres do passado já fizeram. O poeta forte, longe de temer tal comparação, provoca-a.
Entretanto, é preciso observar que, ao se opor aos temas poéticos tradicionais, Cabral estava reagindo contra preconceitos arraigados que haviam sido usados para desclassificar a sua própria produção poética. Sérgio Buarque de Hollanda relata que Domingos Carvalho da Silva, por exemplo, membro do grupo conhecido como Geração de 45, ao qual o próprio Cabral havia pertencido, “decretara que o bom verso não contém esdrúxulas (apesar de Camões), que a palavra “fruta” deve ser desterrada da poesia, em favor de “fruto”, e a palavra “cachorro” igualmente abolida, em proveito de “cão’; e mais, que o oceano Pacífico (adeus Melville e Gauguin!) não é nada poético, bem ao oposto do que sucede com seu vizinho, o oceano Índico”.
Ora, já na primeira estrofe de “Cão sem Plumas”, João Cabral infringe dois desses tabus: “A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro; / uma fruta / por uma espada”.
Esclareço que, ao que afirmar que os poetas fortes não temem tema algum, não tenho a menor intenção de insinuar que Cabral seja um poeta fraco. Cabral não temia coisa alguma: ele estava apenas, de acordo com o ethos vanguardista, proscrevendo aquilo que pensava haver superado.
O que ocorre é que se, antes do modernismo, determinadas formas haviam sido fetichizadas, isto é, se a elas (por exemplo, às rimas) atribuíam-se determinados poderes, o legado da vanguarda foi a desfetichização dessas formas tradicionais.
Mencionei um poeta que atribui às palavras “fruto”, “cão” e “Oceano Índico” certa virtus poética da qual as palavras “fruta”, “cachorro” e “Oceano Pacífico” são carentes. Ora, ao desencantar as formas encantadas, a vanguarda mostrou que na poesia ou no poético não existe prêt-à-porter à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas ou rimas ou metros ou palavras.
Inversamente, mostrou também que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada. Isso implica o reconhecimento de que a poesia se encontra somente em obras singulares, onde é o produto de uma combinação imprevisível e irreproduzível de fatores que não podem ser definidos a priori.
Mas essa descoberta é o resultado final da atividade das vanguardas: é o que ficou depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é, depois que percorreram o caminho que nos trouxe da pré-modernidade à modernidade plena.
Esse caminho, porém, não foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço.
Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia. Foi assim que Cabral proscreveu justamente os temas tradicionalmente poéticos.

2 comentários:

Walmir disse...

Belo texto para boa reflexão, mano. Deixo ele arquivado na memória.
Paz e bom humor.
http://walmir.carvalho.zip.net

Priscila Manhães disse...

Belíssimo texto. O Cícero é mais interessante como articulista do que como poeta.