II- Itamambuca
Nas cítaras do poema continuo, Praia do Felix, Ubatuba 1999.
"Sobre o mar, que eu amava como se fosse me lavar de toda a mácula, via erguer-se a cruz consoladora."
Arthur Rimbaud
Certa tarde caminhei à ponta da praia e sob o sol precipitado e abrasado do verão, adentrei nas sombras da gruta, no caminho pedregoso, e segui a esteira do riacho, subindo o morro, entre a mata e o rochedo. Quanto mais subia, mais o delírio se adensava.
Entre os fachos oblíquos do sol eu via índios Tupis em indecifrável ritual, brumas lhes entreabriam os olhos, a cidades, como sonhos, se mostravam entre os ramos da arvores, cidades solares e antigas. Esquecidas tradições, oráculos, rastros, revelações e símbolos pairavam, funâmbulos, sobre a imagem desconexa dos protestos, dos insatisfeitos.
Era o efeito de um desejo reprimido, o grito dos olhares do passado contornado os mares do meu corpo. Eu não sabia.
Descíamos a serra com as luzes da pequena Ubatuba sufocadas pelas montanhas. Eram nostalgias, ondas de radio e subversões que varavam nosso espírito.
Você se lembra como pequenos universos eram cercados pela floresta?
Havia um forró brega, única diversão da cidade, onde caiçaras se acumulavam e nós nos misturávamos como música, música brega, devo dizer.
Se lembra da menina que você levou para casa? Tinha cabelos de relâmpago, me lembro.
Como era surfar? Eram boas as ondas que vinham do alto da arrebentação até se dissiparem nas margens da areia. Desenhávamo-las.
No século passado, os caras surfavam com madeirite. Viu aquela onda? Se lembra a extensão?
Jogávamos bola. Você ainda acredita no futebol? Os com mais fôlego duravam um dia inteiro. Depois testávamos as aptidões no mar: briga de galo, pirâmide humana, guerra na cachoeira. Concebíamos uma celebração.
Itamambuca me deu os corpos morenos, a rua de terra enraizada em meus pés.
Tinha uma discoteca incrustada na encosta que zombava das águas. As que freqüentávamos em São Paulo eram melhores, mas ondas sonoras zuniam no mar, como uma fábula.
Éramos extremos e dissonantes. Tínhamos as manhãs solares, de lá vieram os primeiros poemas, pois as manhãs eram frágeis com seu gesto dourado e suas ondas. Frágeis e esplêndidas. Nelas escrevi meus primeiros versos, ou nas ondas que desenhávamos, solares e dissonantes, como um zunido marítimo, como uma fábula.
Morrerei rompendo o mar,
sobre meus ossos recém naufragados,
o silêncio brotará
como um azul de tom inconciliável.
Tão longe estarei
das pálpebras dormentes dos astros,
nesse ultimo ato,
que nem o sol
indagará a idade do meu naufrágio,
meu ultimo nome.
No reflexo de um itinerário indivisível,
ressoarei no instante das ondas,
e na simplicidade sem fins ou ternura,
já não serei nem espuma, nem barca,
e não estarei sonhando.
As ondas abriam longos trilhos espirituais, era assim que sempre as compreendi, uma espécie de dança. Somos artistas de nós mesmos, decifrando braços cósmicos, as ondas. Vi um com as pernas retraídas, descendo a onda como um albatroz, sobre um pranchão antigo. A espuma envolveu-lhe e, de súbito, reergueu-se em sua constelação.
Itamambuca tinha areia dourada cercada por montanhas. Tudo era uma floresta mística, o cosmos se condensara em seu ventre, nessa forma de se diluir no universo.
Quem disse que os Deuses querem triste seu Olimpo? Mas nunca uma alegria vulgar, muito humana, e assim era Itamambuca.
No costão esquerdo, as ondas, repentinas, curvavam-se sobre as pedras submersas, relâmpagos azuis. Curvavam-se tão plenas, que era possível se abrigar em seu útero. Eu descia essas paredes como entregando o espírito, para ser, em arte, idéia e pensamento, um explorador de ritmos.
Lemos as ondas com o corpo, na dança, na arte.
As tartarugas vinham respirar ao nosso lado, rainhas marítimas. Os cientistas dizem que descendem dos dinossauros, então também éramos dinossauros. Tinha um pássaro vermelho, todo o corpo vermelho. Para mim, ele era um Deus. Intangível a filosofia.
Quando éramos adolescentes, combinávamos de ficar acordados, assistíamos a vídeos de rock, kung fu, bebíamos Coca-Cola. Alguns resistiam, íamos ver o sol nascer, sonhávamos, estávamos no mundo. O mar, montanhas, vento, astros, isso era o mundo, e, com o tempo, aprendi a ser artista nas paredes das ondas, aprimorei essa arte. É uma música inspirada, uma dança aérea, um vôo. O homem e seu balé, o espaço estético, a palma do mundo oferecendo seu fluxo, seu movimento. Os maiores artistas foram os melhores leitores na escritura divina das ondas. Mesmo nos tempos modernos, em que se quebra sutilmente a harmonia, a música continua límpida.
Acho que hoje sou um melhor artesão ao falar dos trilhos líricos, ao compor suas cítaras e reverberar na música do cosmos, pelas ondas condicionado, por tantos anos em seus braços. Busco a harmonia com as vagas. Vou esculpir a arte e rastrear o útero deste movimento marítimo. O coração reverbera séculos de humanidade e dor, o apelo da arte e da busca, incessante, pela liberdade. Estamos sempre no mundo e dançamos.
A liberdade é um caminho.
Itamambuca
Felipe Stefani
domingo, 18 de outubro de 2009
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