O escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira toma partido na polêmica que começou com moradores da cidade de Santos reclamando do apito dos navios transatlânticos ao se despedirem da cidade portuária. Para alguns, os breves segundos dos apitos atrapalham a televisão.
“Todos estes navios assim comovem-me...” Fernando Pessoa
Dia 1º de março, que curiosa matéria desse jornal [A Tribuna] sobre abstrações mais concretas que toda realidade cotidiana. Apitos de navios dividem opiniões foi reportagem que nos provoca reflexão sobre comportamento e estágio psicológico de nossa alma coletiva. Jornalismo que instiga e me faz tomar radicalissima posição sobre aquilo que já considerava “cláusula pétrea” da jurisprudência de nossos hábitos: o soar dos vapores no torpor das noites e ao raiar do cais comovido pela barra ondulada em vagas.
Eu que ainda curto a melancolia dos vagões em manobras cortando Santos pela madrugada, não canso de louvar essa que é mais gozozo dos desassossegos sonoros: o soar dum navio. Provocativa sinestesia aos psiquismos acomodados, zumbido que me deita ao leito ébrio de saudades por mares nunca avistados. Quero-me inquieto tal esse apito. O rumor das embarcações são ecos telúricos de nossa disposição geográfica, são anúncios cosmopolitas lembrando nosso destino de ilha dissolvendo-se no Oceano das coisas e sentimentos. O soar dum transatlântico é feito orgasmo dilatando-se dentre o estreito e o céu aberto. As gaivotas também saúdam quando vai silvando a proa altaneira dobrando a Ilha das Palmas entregando-se "à imensidade imensa do mar imenso". Quando escrevo e retine o navio já sei que o mundo se avizinha mais próximo de mim no Boqueirão, esse zênite das águas distando, arremetendo às Áfricas ou Patagônias. Pagão, o sonido da nau que zarpa é como badalar duma catedral navegante: sustenido erótico, do convés ao tombadilho: o apito anuncia delírios sem mais âncoras. Toda grande literatura impregna-se de maresia das amuradas ao perder-se da travessia: Homero, Mellville, Walt Whitman e Fernando Pessoa.
Terra estranha: Santos de dicotomias do pensamento; além do progresso e dos utilitarismos, permitam sem regras todos os apitos poéticos que são símbolos de nossa singularidade marítima. O que são minutos televisivos diante do estrépido lírico duma embarcação com todo “mistério alegre e triste de quem chega e parte”? Se pudesse interditaria a desagradabilíssima onipresença dos televisores nos bares que nos pedem só álcool e infindável conversa. Polêmica reveladora: sem apitos, zarpar não seria louvação do mar santo, mas espasmo emudecido. O mar é santo, os navios representam nosso imaginário salgado turbinado de ferro: calar vapores é abstrair do Oceano o anúncio de toda sua arte. Planície encharcada, devemos ao Mar essa réstia urbana de história: ao Mar devemos submissão e amor devoto.
Não se cale o prazer de espocar o porto como quem anuncia metaforicamente a obviedade da existência: partir, tornar e deixar-se perder-se nos elementos indivisos. Quando emudecem navios sepultam em nós oceanos interiores. Legislações, normatizações portuárias: tudo, todo é menos que a Poesia do Mar: esse que nos viu nascer e triunfará sobre nós. Nesse março tórrido me veio à memória Ode Marítima de Fernando Pessoa: ler esse poema que se ouve chorando é como um manifesto pelo soar dos navios. Os apitos dessa nostalgia cultivada deveriam ser tombados: como patrimônio imaterial da municipalidade . Sensualíssimo estampido das esperanças remotas e chegadas inesperadas, apito náutico é grito do espaço para o tempo: sublime. Barcos embriagados: aproem todo teus lirismos.
terça-feira, 10 de março de 2009
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Um comentário:
Fernando Pessoa!! Como não lembrar da faculdade e das aulas de literatura portuguesa e não sonhar com seus versos e palavras tão profundas de "Pessoa"...!!
Amei!! Bjs Júlia!!
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