sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Colaborações: O escritor Flávio Viegas Amoreira e um texto sobre Santiago, filme de João Salles.

‘’ SANTIAGO SEGUNDO JOÃO.’’

‘’Santiago’’ ‘sou eu, mas também é muita gente’.
João Salles, cineasta.


‘’ João Salles é nobre gênio da Alma, feito Ozu filmando Bachelard. Câmera, pincel ou pena : o mestre embaralha gêneros e suportes transfigurando a realidade crua naquilo denominamos Grande Arte. ‘’Santiago’’ é um épico da subjetividade: mais importante documentário brasileiro que tenha assistido; não sou hiperbólico: trata-se de um depoimento filmado que extrapola, excede o meramente registrado: a trajetória contada sem aparatos que não somente a memória e imagética duma existência profundamente sentida e pensada. O entusiasmo é reação ao reducionismo: ‘’Santiago’’ é tudo além daquilo que seria mera estória do mordomo de Walter Moreira Salles ou mimetização miniaturizada da relação ‘patrão’ e ‘criado’ : não é ato circense ou alvo pitoresco para sociólogos ou socialites, trata-se de perfeitamente inacabável experimento formal apartir dum personagem de conteúdo inenarrável. João Salles maturou 15 anos entre feitura e exibição da obra-prima: nesse interlúdio dirigiu contundente retrato da violência urbana (‘’Notícias de uma Guerra Particular’’), acompanhou modo revelador o vitorioso candidato Lula em 2002 (‘’Entreatos’ ) e levou às telas um reticente virtuose do piano (‘’Nelson Freire’’ ); sua marca é zona de sombra, os interstícios, as frestas da imagem, ritmo e sensibilidade: capta o que Walter Benjamin dizia ter-se perdido com a modernidade: o senso de ‘aura’. Santiago Badariotti Merlo é um protagonista de conto borgeano, ‘’Funes, o memorioso’’ discorrendo proustianamente sobre a História humana apartir do mundo detalhadamente encantado seja nos salões da Casa da Gávea ou no claustrofóbico cômodo-locação onde se desencadeia esse ‘making-off’ da existência. Sob a mirada instigante de João, Santiago discorre sobre absurdo da fugacidade, intermitências do coração, as epifanias como resistência ao frágil argumento de finalidade diante da perenitude do vazio ou do nada. Só a fenomenologia poética, a emulação sensorial é capaz de reter o saber que salva do esquecimento. Não há um feixo na revivência, no sonho, no enigma. A tela amplifica literariamente ‘’ santiagogramas’’: apontamentos sobre dinastias persas ou tribos dakotas, reflexões acerca de Dante, Lucrécia Borgia, dum cemitério genovês ou a corte dos Visconti; o monge nefelibata recita Lorca, dramatiza uma fala de Bergman, pontuando digressões gostosamente eruditas ao som de Bach e Beethoven que emolduravam sua Alma refletida em poética veemência, ademanes e Cultura como forma de sobrevivência ante crueza da impermanência: cultivo, não adorno. Intertextual e multicultural: passa das monarquias renascentistas às lendas de Hollywood, não dissocia tons ritualísticos: num flash louva madonas de Rafael noutro enternece com Fred Astaire dançando com Cyd Charise. Quando Santiago tenta expor o que seria mais íntimo, João percebe que toda essencialidade teria sido exposta estando sua ‘diferença’ contida na argúcia de sua intuição. Não resenho, transponho a percepção do impacto: a Grande Arte é essa simbiose entre motivo, expressão e participação do espectador num quadro ou espetáculo que se doa sem síntese: ‘’Santiago’’ ‘é’ João Salles, também sou eu e de qualquer atento, agudo interpretante. O comentário sobre um filme não é antecipá-lo : nem ‘só’ vendo ‘’Santiago’’ se estará identificando o plano metafísico em que se instala um homem rememorando, um diretor poetizando e a montagem tentando dar nexo ao que buscamos cotidianamente: resposta precária que seja ao que vivenciamos. Em época de elites em tropa, ‘enochatos’ e glamourização da burrice, ‘’Santiago’’ é um registro eterno da verdadeira aristocracia, a do espírito : que é de João e seus espelhos: o artista dá vida ao que nomeia quanto mais belo é o efeito ambíguo do que produz.’’

[Flávio Viegas Amoreira, escritor / crítico literário
Já lançou 5 livros pela 7 Letras, poeta, contista e romancista]

flavioamoreira@uol.com.br

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